Se o leitor prestou atenção ao título deste artigo já terá adivinhado que a estória se passa em Kaunas, a segunda cidade da Lituânia. Por lá se encontra um magnífico museu etnográfico ao ar livre, consistindo numa enorme área campestre repleta de casas tradicionais e edificações funcionais. Thomas, o nosso anfitrião, levou-nos de carro até este parque, sito a um par de dezenas de quilómetros da cidade. Não havia muita gente a visitar o museu naquela manhã cheia de sol. Talvez fôssemos mesmo as únicas pessoas por ali, para além das funcionárias que iam tratando da rotina diária de manutenção das casas.
Entrámos numa clareira, onde uma simples construção se encontrava. Era estranha, claramente diferente de todas as outras que até então tinhamos observado. E do outro lado do amplo círculo rodeado de árvores, algo ainda mais bizarro: um vagão de transporte de mercadorias. O Thomas explicou-me: aquele espaço era dedicado aos lituanos que foram deportados para a Sibéria após a anexação dos países bálticos por parte da União Soviética, em 1940. A casinhota era uma réplica dos barracos em que os seus compatriotas foram forçados a viver anos a fio nos confins gelados da Rússia, e o vagão – que estava cheio de pinturas alusivas à situação – representava as condições em que mais de 130.000 lituanos foram transportados para longe da sua terra.
E dito isto, o meu amigo incitou-me a prosseguir com a visita, porque costumava andar por ali uma velhota, que se nos apanhasse começava a falar e era capaz de o fazer durante horas. Ora para infelicidade do Thomas – e para minha enorme ventura – a senhora apareceu de imediato e, de facto, começou a falar, em lituano, claro. O nosso anfitrião ia traduzindo, e colocando-lhe algumas questões que nos iam surgindo, todas recebendo resposta pronta daquela idosa de olhos azuis vivos.
A sobrevivente
O seu nome será para sempre uma icógnita, mas soube desde logo que era uma sobrevivente. Com a família, foi enviada para o desconhecido pelos soldados soviéticos. A idade que tinha à data, não o sei, mas as memórias dos acontecimentos eram vívidas. Se por altura da anexação contasse dez anos, teria naquele dias 82 anos. O seu corpo terá sido agredido de todas as formas durante os longos anos em que enfrentou as condições que mataram muitos dos seus amigos e conhecidos. E, contudo, ali está ela, afoita, vivaça, impecavelmente vestida – e quando assim falo, não me refiro apenas ao asseio das roupas, mas também ao estilo moderno – pronta para partilhar as suas memórias com quem quer que por ali passe.
A narrativa é pungente. Fala de milhares de quilómetros percorridos a pé, arrastando os parcos haveres reunidos à pressa e admitidos pelos captores russos. Montes e vales ultrapassados, pés desfeitos, arrastando-se no gelo sem uma sola, já gasta há muito, que os protegesse. A partir de certo momento, as famílias são desmembradas: homens para um lado, mulheres para outro. Quanto às crianças, às mais afortunadas foi-lhes permitido ficar com as mães, mas outras tornaram-se filhas do Estado para não mais serem vistas. E o mesmo sucedeu aos casais ali separados. Dos que sobreviveram, poucos terão reencontrado o seu cônjuge.
As condições de vida que encontraram quando finalmente chegaram deveria chamar-se antes “condições de morte”. A velhota contou-nos detalhadamente a dieta a que eram submetidos, ano após ano. E custa a acreditar que alguém conseguisse ultrapassar com vida alguns meses quase completamente privado de alimento. Mas aqueles lituanos não estavam apenas condenados à inanição. Tinham que trabalhar a troco de nada, alguns, lidando no seu labor com os géneros alimenticios que lhes eram negados.
Com um gesto amplo do braço e mão aberta, a senhora vai-nos dizendo:
“- Esta casita que aqui vêem é apenas vagamente parecida com as que tinhamos como lar. Não, esta seria uma casa de rei. Aquelas em que viviamos eram muito mais pequenas.”
E qual teria sido o crime daquelas gentes? Nenhum. Simplesmente representavam uma ameaça à ocupação soviética. Eram a inteligentsia da sociedade lituana: professores, autarcas, presidentes associativos, escritores, artistas. Qualquer um que tivesse algo que o distinguisse.
Viemo-nos embora, e fiquei a matutar que se calhar seria esperado que contribuisse com algum dinheiro pelas estórias que ouvi. Primeiro senti-me terrivelmente mal, por não ter ajudado aquela sacrificada criatura, mas depois, não sei se para aliviar a própria consciência, ocorreu-me que a dignidade não tem preço, e que talvez o que deixa gravado nas memórias, para que nunca seja esquecido, seja paga suficiente para aquela senhora de ar digno.
“During Soviet occupation, the nation sustained heavy losses. Every third Lithuanian became a victim of Soviet terror. During 1940-1953, some 132,000 Lithuanians were deported to remote areas of the USSR: Siberia, the Arctic Circle zone and Central Asia. They were not allowed to leave remote villages. More than 70 percent of the deportees were women and children. There were 50,000 women and 39,000 children deported to remote areas of the USSR. Some 30,000 of the deportees died there mostly because of slave work and starvation. Some 50,000 of the deportees were not able to return to Lithuania. During the same period, another 200,000 people were thrown into prisons. Some 150,000 of them were sent to the Gulags, the USSR‘s concentration camps, situated mostly in Siberia.”
Mais detalhes sobre as deportações de lituanos para a Sibéria:
https://en.wikipedia.org/wiki/Soviet_deportations_from_Lithuania
Artigo do blog Cruzamundos. Mais textos em http://www.cruzamundos.com/